Visita de Marguerite Yourcenar a Sintra - reedição
"Minha senhora,
Não tenho por hábito escrever prefácios ou introduções. É o que vos explicará a minha hesitação em fazê-lo para o texto que se propõe publicar na RAIZ E UTOPIA. E porquê? Um texto diz o que tem a dizer, a menos que seja um falhanço, e arriscamo-nos a diluir ou a sobrecarregar a mensagem adicionando-lhe uma explicação em notas.
Que fazer, então? Talvez começar por lembrar que estas páginas foram escritas no vosso país, Portugal, mais precisamente em Sintra. O que escrevemos raramente guarda a marca do lugar onde o escrevemos, a menos que o objetivo seja descrever esse lugar ou se trate de literatura de viagem.
Mas o autor sabe: o texto mantém para ele o odor e a cor do lugar onde foi criado. Nunca poderei relê-lo sem rever, da janela do meu quarto em Seteais, as nuvens a passar e repassar no alto das colinas, cobrindo e descobrindo o estranho e absurdo castelo de estilo pseudo-manuelino-germânico, oferecido por um príncipe alemão, no Século XIX, que teve porém a sensibilidade de reconhecer um lugar de encantamento e magia.
A exuberância vegetal e a extravagância humana dominavam, vistas da minha janela, o primeiro plano do requintado pátio e dos pórticos de Seteais, como um cenário de Wagner sobreposto a um cenário de Mozart. Foi ali, por acaso, nesse quartinho levemente rococó que escrevi estas páginas dedicadas ao sofrimento animal – que não é mais que uma das piores formas do sofrimento universal. Levantava a cabeça, de tempos a tempos, para ver se o nevoeiro, no seu jogo, não tinha levado o castelo de Drácula. Mas não: lá continuava e pelo anoitecer acendia o seu olho vermelho. O Mal, que faz do homem o carrasco das outras espécies e também da sua, é, receio bem, igualmente imutável.
Mas não se passam cinco dias num lugar qualquer apenas a escrever um ensaio, mesmo quando se trata de um tema que nos toca o coração.
Fica-se exposto, como sempre, a essa mistura de pequenas e grandes alegrias, de pequenos e grandes males, de leves preocupações e ansiedades profundas que enchem cada dia das nossas vidas. Os meus pulmões e os meus brônquios (tinha chegado doente), indispostos por essas neblinas e chuva caprichosa, desempenhavam o seu papel, é preciso dizê-lo, tal como o voo dos pombos-torcaz e o perfume das glicínias de Seteais. Os jogos fascinantes do tempo também interferiam nisso. No livro de visitas do hotel, encontrei a marca de uma das minhas primeiras passagens, há cerca de vinte anos, com uma amiga já falecida. No livro, ela expressava o seu entusiasmo por este belo lugar. Quantas coisas mudaram, entretanto, em Portugal e em mim! E quanto, no fundo, ficou igual. Nós formamo-nos, deformamo-nos, reformamo-nos com o pano de fundo dos nossos sempiternos instintos, dos nossos desejos, das nossas vontades, das nossas fraquezas e das nossas forças, como as nuvens sobre a serra de Sintra”.
Marguerite Yourcenar
Palácio da Pena envolto nas brumas do Monte da Lua
Texto original ler aqui:
Créditos:
-Agradecimentos a Emilia Reis pela disponibilização do texto
Informação adicional de Emilia Reis:
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